Por Otávio Balaguer – ACAM Portinari
Discutir Museologia exige tocar em uma diversidade de temas que esse texto não pretende esgotar. Por isso, falaremos um pouco sobre as raízes dos museus, da disciplina e de sua profissionalização, focados na história brasileira.
As origens da Museologia, enquanto ciência social aplicada, ou seja, conhecimento científico e, portanto, acadêmico, estão assentadas na prática museal, ou melhor, no “fazer museológico”. É a partir das experiências empreendidas por profissionais, que atuam em redes internacionais ao longo da história, que têm se conformado os debates epistemológicos da Museologia, os quais sem dúvida não se consolidaram ou se encerraram.
O museu que conhecemos hoje, enquanto tecnologia Ocidental, surge no contexto das revoluções burguesas, notavelmente a Revolução Francesa, quando se pretendia “universalizar” o acesso às artes e ao patrimônio humano, por meio da educação. Contudo, ele ganha forma no contexto do imperialismo, período no qual as potências econômicas e militares europeias, sobretudo, invadiram territórios alheios em busca de recursos humanos e materiais, além da expansão de seus mercados – exigência do então capitalismo nascente.
Portanto, a herança do colonialismo é marcante nas instituições museológicas em todo o globo. Nesse sentido, os museus no Brasil têm lugar preponderante: nasceram antes mesmo das universidades, cumpriam (e cumprem) papel central na produção científica nacional. Foram nas reservas do Museu Nacional (1818), Museu Paraense Emílio Goeldi (1866) e Museu Paulista (1895) que se construíram como disciplinas acadêmicas a Antropologia, a História Natural e a História Social.
À época, o papel das instituições era consolidar práticas culturais hegemônicas, que representavam as camadas sociais e raciais que estavam no poder e funcionavam para consolidar sua perspectiva de mundo e distinguir os seus. Como afirma José Reginaldo Santos Gonçalves, “espaços demarcados social e simbolicamente definem-se por uma relação de supremacia ideológica em face de outras formas culturais.” (GONÇALVES, 2005, p.256).
Tais instituições compunham redes internacionais de produção científica e publicavam conhecimento em periódicos de circulação global à época (SCHWARCZ, 1989). É, portanto, nesse contexto que os profissionais dos museus brasileiros passaram a deixar suas marcas na construção da Museologia. Entretanto, a constituição da matéria e a profissionalização de quem lida cotidianamente com as coleções e não “apenas” com sua curadoria e pesquisa começa a se dar na década de 1930 do século XX.
É nesse contexto que surge a Escola de Museus do Museu Histórico Nacional, composta por alunas, sobretudo, da elite republicana. Seus objetivos eram processar, registrar e expor os índices materiais e simbólicos de sua classe social de origem, os quais estavam atrelados, obviamente, a uma ideia e projeto de nação. Portanto, mobilizavam o museu como ferramenta de representação, tema exposto na obra “A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil” de Regina Abreu (1996).
A figura central na criação do primeiro curso acadêmico de Museologia no país foi Gustavo Barroso. Personagem controverso, Barroso era integralista, filo-fascista e antissemita, apoiador do governo autoritário de Getúlio Vargas e daquela proposta de identidade nacional. Seu legado na História Social do país é problemático e deixou para os profissionais da museologia uma herança de relações perigosas.
Contudo, foi apenas nas décadas seguintes, como aponta Gonçalves (2005), que os trabalhadores de museus tiveram seus apelos de profissionalização atendidos, pari passu com os debates da Nova Museologia. Isto é, a função social do museu passa a ser questionada e repensada, em oposição às práticas da chamada Museologia Tradicional. Os agentes internacionais, como o Conselho Internacional de Museus (ICOM), organizaram debates no bojo da consolidação dos movimentos sociais naqueles então rotulados “primeiro” e “terceiro” mundos.
É em 1972 que acontece a famosa Mesa Redonda de Santiago do Chile, na qual a proposta do museu integral se estrutura e se propaga pelo globo. Contudo, cabe ressaltar que o Brasil fica de fora desse debate. A delegação do país foi boicotada e substituída pelo Regime Militar, pois o representante seria o educador Paulo Freire. Com isso, aqui, nas terras brasileiras, a Declaração de Santiago foi engavetada, tendo sua repercussão bloqueada. Só posteriormente os movimentos de profissionais puderam se apropriar dos debates oriundos daquele evento, além do amadurecimento das reflexões locais, afinal, Waldisa Rússio, expoente da Museologia Paulista, diria que o museólogo é um “trabalhador social”.
O legado museológico deixado por “Waldisa”, como se costuma dizer, tem como seu principal indício os museus e os profissionais de museus paulistas. Sua atuação junto ao Governo do Estado de São Paulo permitiu a consolidação de equipamentos museológicos, formação e difusão de coleções. Enquanto professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), instituiu o primeiro curso superior da área, no estado, formou e qualificou as primeiras levas de nossos museólogos e museólogas.
Os movimentos regionais e articulados em nível nacional conseguiram, na década de 1980, o reconhecimento legislativo de seu ofício, consolidando a profissão de museólogo pela Lei 7.287, de 18 de dezembro de 1984. Já no primeiro artigo, o regramento determina o amplo campo de atuação do profissional, dizendo que “o desempenho das atividades de Museólogo, em qualquer de suas modalidades, constitui objeto da profissão de Museólogo, regulamentada por esta Lei.” (BRASIL, 1984). No artigo terceiro, delimita um pouco mais quais são tais atividades, ainda assim abrangentes. Ou seja, o que constitui a responsabilidade técnica do museólogo, por meio de sua supervisão, é a gestão dos processos museológicos e tratamento dos acervos, nas diferentes etapas do ciclo curatorial.
Em seguida, foram criados os Conselhos Regionais de Museologia (COREM) e só posteriormente o Conselho Federal de Museologia (COFEM). Isto porque as articulações regionais anteriores à legislação eram fortes.
A conquista é clara. O trabalhador de museus à época se tornou protegido por lei, mas, claro, as arestas existem e, infelizmente, ainda não foram aparadas, arrastando discordâncias por décadas entre aqueles envolvidos e os futuros/atuais profissionais, sobretudo quanto ao nível de titulação e o grau de experiência acadêmica (tema para o próximo debate).
O fato é que que as conquistas pretéritas, fruto de uma massa de profissionais organizada e, a partir de então, regimentada, abriram caminho para a regulamentação dos equipamentos museológicos em nível nacional. Desta maneira, em 2009 foi instituído o Estatuto de Museus pela Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009 (BRASIL, 2009), regulamentada em pelo Decreto nº 8.124, de 17 de outubro de 2013 (BRASIL, 2013).
A publicação do Estatuto de Museus e criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) vieram fundamentar juridicamente os anseios e regramentos próprios das instituições museológicas. Estabelecem as responsabilidades sobre o patrimônio cultural que preservam e comunicam, além de determinar seus documentos fundacionais, gerenciais e operacionais, dentre eles, o Plano Museológico, prerrogativa do museólogo.
Contudo, a tradição histórica brasileira de manuseio dos regramentos a favor dos status quo, tem feito com que essa legislação museológica ainda não esteja plenamente aplicada, cujos sintomas são a ausência de museólogos e documentos gerenciais nos museus do país – curiosamente, sobretudo naqueles ligados à administração pública direta. Ouve-se dizer que a interpretação da Lei Federal e do Decreto, ambos de instituição do Estatuto de Museus, permite entender que não é obrigatória a presença do museólogo na instituição. Porém, aqueles que assim o dizem não estão atentos à Lei Federal que regulamenta a profissão, a qual, como vimos, determina que o trabalho gerencial do museu é incumbência do museólogo.
Após décadas de conquistas e reflexões, parece que algumas brechas foram deixadas nesse conjunto legislativo apresentado anteriormente. Cabe agora aos profissionais estabelecerem diálogos pelo sistema COREM – COFEM, e por meio de um forte advocacy, ganhar espaço público, influenciar a administração federal e ajustar as regras do jogo.
Nesse sentido, uma tentativa de ampliar o processo de qualificação do setor museal paulista é o Cadastro Estadual de Museus (CEM-SP), política pública da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, empreendida pelo Sistema Estadual de Museus de São Paulo (SISEM-SP) em parceria com a Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari (ACAM Portinari) – Organização Social de Cultura.
O CEM-SP permite oferecer assessoramento técnico e qualificação profissional por meio dos produtos oferecidos no processo cadastral. Isto, além das demais políticas estruturadas nas cinco linhas de ação do SISEM-SP. Cabe ressaltar que as equipes técnicas, tanto da secretaria, quanto da organização social, são compostas por museólogos, técnicos e profissionais de museus.
Ainda no tema, a Nota Técnica nº1-2018 da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM), responsável pelos museus estaduais paulistas, pretende fortalecer a interpretação do arcabouço jurídico museológico e fundamentar a presença do museólogo nos museus. As políticas nas esferas federal, estadual e municipal, associadas permitem a continuidade da estruturação dos equipamentos. Tendo em vista que museologia é processo, o trabalho nunca acaba.
O cenário museológico atual é desafiador, não só nos aspectos da gestão e governança museal, mas também nos princípios teóricos e metodológicos disciplinares. Muito se tem falado de descolonizar o museu, enquanto lugar de saberes e representação pautado pelo eurocentrismo. Porém, é intrínseco ao museu tradicional – e repetimos: tradicional – ser um espaço colonizado e, muitas vezes, instrumento de colonização. Ora, o Museu, enquanto tecnologia humana, é uma ferramenta datada, cujas raízes estão imersas nas práticas do europeísmo Ocidental.
Contudo, a disciplina museológica não é homogênea. Ela permite dissonâncias e dissidências. É, assim, que surgem as apropriações do instrumento por grupos que outrora foram e são, por diversas formas, colonizados, marginalizados ou reivindicam a memória traumática da colonização, impregnada na história de seus corpos. Somente no bojo desses coletivos é possível entender o museu como um lugar da não-colonização.
As tentativas de descolonização/decolonização realizadas pelo mainstream museólogo proporcionam, de fato, a ampliação das vozes que ecoam nos museus, mas ela é intrinsecamente limitada, pois ao ser tradicional, branca e, muitas vezes, governamental, não pode ser verdadeiramente disruptiva. É, diríamos, uma limitação epistemológica. Poderíamos entendê-lo menos colonizador? Talvez, mas entraríamos em um debate atribulado.
Os propósitos da disciplina outrora eram limitados. De fato, pensar o museu hoje, no plano ideal, é pensar uma instituição orgânica, integrada a seu território e detentora de um patrimônio comunitário. Eis que chegamos à questão, enquanto museólogos e profissionais de museus: como trabalhar, então, com o fato de que nosso conhecimento está assentado em experiências traumáticas? Como trabalhar, verdadeiramente, a memória do passado cruel? Para esse que vos fala, a museologia, entendida como um campo da comunicação, deve ter constante preocupação com “forma e conteúdo do que é transmitido”, porque “não é permitido ao bom museólogo semear a desinformação, a violência e o erro” (BALAGUER, 2019, p. 168).
Para finalizar, não podemos deixar de falar que hoje a agenda que se impõe aos museólogos, museus e, seguramente, a todas as organizações do mundo contemporâneo é a Sustentabilidade. O desafio será alinhar os valores institucionais aos princípios de um planeta globalmente integrado, ambiental, econômica, cultural e socialmente sustentável. Ou melhor, mais sustentável. Nesse sentido, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, por meio do seu Sistema de Museus, trabalhou ao longo de dois anos, de forma colaborativa e participativa, na consolidação de diretrizes para o desenvolvimento sustentável dos museus paulistas: a Política SP de Sustentabilidade em Museus.
Pensamos em tudo isso porque, como já expõem a legislação, a profissão do museólogo, assim como o museu, é transversal e aglutina muitos saberes, fazeres e preocupações. O museólogo deve se ocupar de uma diversidade de temas, concomitantemente, portanto, deve ser dinâmico e orgânico.
Esperamos poder celebrar o próximo aniversário da profissão com a consolidação de nossas conquistas, ampliação de nossa agenda ética e maior espaço no debate público. Por enquanto, ficamos com o diagnóstico esboçado anteriormente, e propomos um exame de consciência: considerando que museu é processo, quais ações edificantes temos podido empreender, individualmente, em nosso cotidiano profissional?
Otávio Pereira Balaguer
Museólogo
COREM 4R 359-II
Referências Bibliográficas
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégia de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
BALAGUER, Otávio Pereira. Kehilat Israel: um estudo de narrativas expositivas sobre a imigração judaica. 2019. Dissertação (Mestrado em Museologia) – Museologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.103.2020.tde-11122019-173005. Acesso em: 2021-12-14.
BRASIL. Decreto Federal nº 8.124, de 17 de outubro de 2013. Regulamenta a Lei nº11.904/2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d8124.htm. Acesso em 10 dez. 2021.
BRASIL. Lei Federal nº 7.287, de 18 de dezembro de 1984. Dispõe sobre a regulamentação da profissão de museólogo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7287.htm#:~:text=LEI%20No%207.287%2C%20DE%2018%20DE%20DEZEMBRO%20DE%201984.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20Regulamenta%C3%A7%C3%A3o%20da,O%20PRESIDENTE%20DA%20REP%C3%9ABLICA%3A&text=1%C2%BA%20%2D%20O%20desempenho%20das%20atividades,Muse%C3%B3logo%2C%20regulamentada%20por%20esta%20Lei. Acesso em 10 dez. 2021.
BRASIL. Lei Federal nº 11.904, 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museus. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11904.htm. Acesso em 10 dez. 2021.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. “Os museus e a representação do Brasil. Os museus como espaços materiais de representação social”. In: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Revista do Patrimônio. Rio de Janeiro, nº 31, p. 255-274, 2005.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. “O nascimento dos museus no Brasil”. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989, p. 45-67.
Download “Profissão Museologia, por Otávio Balaguer”
Balaguer-Otavio_profissao_museologia_artigo.pdf – Baixado 162 vezes – 182,17 KB